A VIAGEM DE PEDRO | UMA NOVA, E INTERESSANTE, PERSPECTIVA SOBRE DOM PEDRO I

Embora não tenha sido de forma proposital, o lançamento de “A Viagem de Pedro” acontece no ano do bicentenário da independência do Brasil e do regresso de Dom Pedro I à Portugal. É um momento interessante, tanto político quanto social, para trazer essa história da maneira como é contada. Aqui Dom Pedro I (Cauã Reymond) não é um herói que justifique ter seu coração conservado e adorado por centenas de anos após sua morte, e sim um homem atormentado e ordinário, se não fosse pelo seu papel na monarquia.

 “A Viagem de Pedro” é um filme histórico, mas é primeiramente uma versão de biografia. O filme traz sim aspectos e fatos históricos, mas sua essência está no estudo aprofundado de uma porção da personalidade do personagem de Pedro. O período escolhido para retratar sua imagem é estratégico, pouco se sabe sobre os meses de trajeto entre o Brasil, do qual Pedro abdicou do trono (deixando seu filho, extremamente jovem e sozinho, para comandar em seu lugar) e se dirigiu a Portugal na tentativa de recuperar o trono (e o respeito) tomado por seu irmão Miguel, dando assim maior liberdade aos roteiristas para criar. Pedro era visto como traidor por Portugal, pátria que abandonou, e sua imagem no Brasil, pátria que escolheu, não é muito mais favorável, essa instabilidade, somada às suas questões pessoais, de sexualidade e saúde, criam o ar sombrio, pessimista e reflexivo que regem o longa.

A bordo da Fragata, Pedro se encontra numa espécie de prisão – física e mental – rodeado de incertezas e, diferente do que está acostumado, de uma tripulação que não está nem perto de lhe oferecer o respeito que era, a rigor, devido a imperadores. É um momento particularmente complicado para Pedro e suas inquietudes são personificadas pelas memórias das mulheres que passaram pela sua vida com maior relevância, a doce Maria Leopoldina, sua primeira mulher, sua amante Maria Domitila e sua segunda mulher, Amélia. É interessante a brincadeira com a subversão do que se conhece de Dom Pedro I e sua sexualidade, as pesquisas sobre a época apontam o imperador como um homem reconhecido pela sua virilidade, mas dentro do navio, já com a saúde debilitada e a cabeça não tão centrada, Pedro é impotente e sua imagem, notoriamente machista e misógina, já não tem tanta força em relação às mulheres que até então sempre lhe foram submissas.

O roteiro e a direção de Laís Bodanzky tiram Pedro do pedestal de imperador, deixando as rédeas de sua história nas mãos de mulheres e membros negros da tripulação, ainda que Pedro permaneça como protagonista. É interessante ver a força e influência que esses grupos subjugados exercem sobre a psique em decadência de Pedro, que acaba até mesmo participando de rituais das demais culturas presentes na tentativa de se reestabelecer fisicamente, sendo a impotência sua maior preocupação, uma vez que também representava suas maiores fragilidades.

Além de uma fotografia (Pedro J. Márquez) bem composta apesar da falta de diversidade dos cenários, um dos pontos mais marcantes em relação à narrativa é sua globalidade. O filme é uma produção conjunta do Brasil e Portugal, mas Laís Bodanzky não hesitou em misturar diversas nacionalidades em seu elenco e nos idiomas do filme, que contém diálogos e narrações em português, inglês, francês, alemão e dialetos da Guiné-Bissau sem criar confusão no espectador, mas sim acrescentando valor à produção.

Todo o elenco, nacional e internacional, é muito talentoso e justifica “A Viagem de Pedro” ser um dos candidatos a representar o país no Oscar, com destaque para Isabél Zuaa no papel da recém-liberta Dira e Cauã Reymond que se dá muito bem no drama e sabe retratar os delírios da mente de Pedro acometida pela sífilis, que são de extrema importância para a trama. Os devaneios e pavores de Pedro se misturam com a realidade a ponto de nos deixar confusos em relação ao que se passa verdadeiramente e o que é só fruto de sua imaginação, mas o fato do filme deixar essa questão – e outras reflexões – em aberto, é mais um ponto positivo no conjunto da obra.

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