Com Seu Jorge e Noah Schnapp, “Abe” é uma visão genial acerca da gastronomia e seu poder

Abraham. Ibrahim. Abe. Quando se imagina um filme meio brasileiro, meio estadounidense, com Noah Schnapp, de Stranger Things, e Seu Jorge, ícone cultural brasileiro; que trata sobre política e religião, mas é sobre gastronomia e família, pensa-se em que? Tratando de tantos assuntos quanto nomes que possui seu protagonista, Abe, filme de Fernando Grostein Andrade, é uma extraordinária viagem gastronômica por uma diversidade de culturas e países, se aproveitando de um personagem central cativante e culturalmente complexo para abordar discussões profundas e socialmente relevantes.

O filme conta a história de Abe – ou Abraham, Ibrahim… –, um garoto de 12 anos que cresce em meio à uma constante desavença familiar: enquanto sua família paterna é muçulmana, a materna é judaica, refletindo os conflitos Palestina x Israel de forma sutil, mas bastante inteligente; para piorar, seus pais são ateus, e se recusam a deixar o filho a ser influenciado por qualquer uma das religiões, principalmente porquê cada lado da família busca trazer o protagonista para suas crenças. Assim, sendo apaixonado por culinária, Abe decide aprender a cozinhar com o chef interpretado por Seu Jorge para seguir seus sonhos e, no caminho, unir os dois lados da família.

Vê-se que, de forma leve e sensível, o autor se utiliza de tal dinâmica familiar para refletir acerca das desavenças entre as duas culturas. Em meio a discussões na mesa de jantar, das mais simples às mais complexas, a obra apresenta uma abordagem política bastante delicada sem escancarar um ponto de vista específico ou uma opinião fechada acerca do tema, não defendendo um lado específico do conflito, mas relativizando a necessidade deste por si só.

Entretanto, mesmo que bastante importante para a trama, a discussão política não é o principal fator – sendo, portanto, apenas um dos diversos temperos que dão sabor à essa brilhante narrativa proposta pela obra. A luta do garoto pela liberdade em decidir seu próprio caminho, em meio a constantes esforços para agradar cada um dos lados que contorcem sua vida, guia a história de forma dinâmica e sagaz, onde o espectador não só é convidado a se deliciar visualmente com as comidas apresentas, mas também se angustiar pela constante pressão que o protagonista sofre para se adequar a três visões distintas de mundo – muçulmana, judaica e atéia –, as quais não o permitem que veja com os próprios olhos.

Conforme vai crescendo, Abe vai construindo sua própria noção da realidade, unindo fragmentos de tudo aquilo que é imposto por seus familiares, mesmo que, a partir disso, vá contra todos eles. Tal fator se relaciona com a própria ideia de fusão culinária, apresentada tanto por Abe quanto por Chico – o chef interpretado por Seu Jorge – em meio à tamanha paixão pela cozinha.

Termo de suma importância para a narrativa do longa-metragem, o chef discorre sobre a ideia de que, na cozinha, não basta apenas misturar vários sabores aleatórios para se produzir um prato decente – criticando assim o taco recheado com macarrão feito pelo garoto –, explicando que é preciso um olhar crítico para se juntar diferentes fatores já estabelecidos em uma originalidade de fato adequada. Indo além do desenvolvimento de combinações gastronômicas bem elaboradas, portanto, o personagem interpretado por Schnapp vai além, se prontificando em desvendar o mundo a partir deste fator: prepara para si uma visão de mundo própria, fundindo noções já estabelecidas por sua família em algo próprio, algo que demonstra um impecável crescimento de personagem ao longo do filme. Não só apenas um paralelo, os aprendizados de Abe na cozinha refletem à sua vida pessoal: enquanto aprende a fundo a gastronomia, desenvolve maior autonomia em sua vida pessoal, crescendo como ser humano.

Ainda assim, o prato principal ainda é claro: acima de tudo, Abe é um filme sobre comida. Inicia-se com comida, guia-se pela comida, e termina com comida. O longa-metragem discorre sobre a comida e a relação desta com o ser humano, tendo desde afeições sentimentais históricas e culturais, até a possibilidade de identificação pessoal pela gastronomia. É, claramente, um informal convite ao espectador para refletir sobre a culinária, se utilizando das mais diversas receitas e combinações para discorrer sobre um amontoado de culturas ao redor do globo – desde a palestina, passando pela estadounidense e brasileira, até a israelense –, trazendo visões diversas acerca destas nacionalidades, sempre relacionando-as com o poder da gastronomia.

É, portanto, uma brilhante obra sobre a cozinha em suas mais diversas formas e culturas, mostrando as mais intensas e variadas relações do indivíduo com a gastronomia – desde um elo sentimental até um apetitoso hobby –, deixando claro que o mundo pode ser enxergado pela cozinha, e o ser humano pode ser vislumbrado por seu estômago. Com um elenco diverso e muito bem marcado, Fernando Grostein Andrade constrói em Abe uma oportunidade de se olhar a culinária com outros olhos, fazendo com que o espectador, no caminho, reflita sobre política, pondere sobre a imposição de crenças nos jovens e, acima de tudo, fique com água na boca.

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