Delicada comédia melodramática, “Maria do Caritó” é uma atemporal visão sobre amor próprio

Prateleira individual da cultura sertaneja, caritó é também uma expressão que, originada no Nordeste, se refere às mulheres que envelhecem sem se casar. Assim, como a palavra se refere a uma prateleira que fica no alto da parede – de difícil acesso para as pessoas – é uma forma de indicar que tais moças se encontram fora do alcance do casamento, mesmo que de forma um tanto sexista. A premissa de Maria do Caritó, assim, se mantém a partir da ideia apresentada: a protagonista, interpretada por Lilia Cabral, nunca teve a chance de arrumar um marido – e nenhuma relação mínima de intimidade com um homem – o que a faz entrar em uma série de desventuras para descobrir o amor que tanto deseja.

Diz o pai de Maria que, quando ela nasceu, havia lhe prometido para um santo, o que a fez viver em uma exclusa vida de castidade e limitações, fato o qual fez com que a protagonista fosse considerada, por toda sua pequena cidade do interior, uma santidade. Vinda diretamente de uma peça de teatro – com alguns atores, inclusive Cabral, se mantendo nos mesmos papéis –, o longa-metragem se reinventa, apresentando uma composição narrativa e artística que conversa facilmente com a peça mas, ainda, mantém a quantidade certa de originalidade que muitas obras baseadas falham em fazer.

As esperanças da personagem para encontrar o amor continuam a partir de uma série de simpatias feitas por Maria e pela melhor amiga, Fininha, que não poupa esforços para ajudá-la. As duas acreditam, entretanto, que o amor verdadeiro de Maria chegou junto de um circo itinerante que chega na cidade, e é aí que a história realmente começa. Anatoli, homem que compõe a atração principal do circo, acaba chamando a atenção da protagonista, que enxerga nele – erroneamente – a figura de um homem perfeito. A trama continua, assim, a partir da relação de Maria com o circo, mantendo fortes suas esperanças de se relacionar com Anatoli, mesmo que para isso tenha que elaborar um ato circense.

O circo, entretanto, era mal visto por algumas pessoas específicas na cidade. O pai de Maria e o Monsenhor, líder religioso da cidade, acreditam que tais atrações embaixo da lona sejam deveras profanas, enquanto o Coronel, líder político aguardando as próximas eleições, defende que a arte contraria seus interesses e deve ser censurada.

Assim, vivendo uma vida dupla – de dia uma santa que faz campanha para o Coronel, e de noite uma atração circense –, Maria acaba se relacionando consigo mesma de forma a entender um pouco mais sobre quem ela é, algo impossibilitado ante toda sua vida, pois não lhe era permitido ser, antes disso, mais do que um símbolo religioso e político. Foi usada durante toda sua vida tanto pelo próprio pai, que se utilizava da figura da filha para lucrar, quanto pela igreja a qual tanto admira, porém engana-se quem pensa que Maria do Caritó é uma crítica a religião, pelo contrário: a fé é demonstrada como algo significativo e importante, porém deixa claro que há quem a utilizará para seu próprio bem – inclusive líderes religiosos.

Diferente do Monsenhor, cuja má fé é revelada aos poucos para a personagem – mesmo que o público perceba desde o começo suas más intenções –, o Coronel é diretamente associado a uma má pessoa por Maria. Este não se importa de ameaçar qualquer pessoa em seu caminho para conseguir o que quer, fazendo de tudo para que a protagonista seja a imagem principal associada à sua campanha. Por tamanhas críticas religiosas e escrúpulos políticos, Maria do Caritó consegue conversar com a realidade recorrente do país, mesmo que sua peça tenha sido desenvolvida em 2010, quase uma década antes de seu lançamento cinematográfico.

Representa, portanto, um Brasil atemporal que se mostra formado pela fé e pela arte – no caso, o circo. Enquanto os cidadãos da pequena cidade compõe a multidão que idolatra e reza pela santa Maria do Caritó, aparecem também compondo a plateia do circo. Estes acabam se tornando, em conjunto, um personagem que é desenvolvido a partir da visão e participação destes na religião e na arte que compõem a narrativa do filme. Assim, intensifica-se a ideia de que cultura e religião são dois pilares que não precisam se anular, ambos podendo coexistir e se complementar de forma harmoniosa e significativa.

 

É importante ressaltar que, a partir da relação de Maria com a religião e com o circo, vemos sua trajetória sendo traduzida por sua concepção artística: antes vestida de santa, agora de palhaço, elabora-se um processo de autodescobrimento e, aos poucos, uma nova personalidade emergindo dos retalhos do que antes era uma prisão emocional e psicológica. Antes Maria do Caritó, uma santa a la Bela Adormecida esperando o príncipe perfeito chegar e lhe tirar de sua torre construída pelo próprio pai, e depois Palhaça Afrodite, artista que se liberta com a música. Depois disso, Maria passa por uma terceira fase, a qual conclui a personagem de forma brilhante, surpreendente e bem construída, a qual seria um grande spoiler compartilhar, porém certamente agradará a quem prestou atenção na história.

Um melodrama circense e religioso recheado de um humor leve e delicado, o longa-metragem se destaca em meio a um circuito nacional onde a maioria das comédias são pastelões forçados e sem significado. Maria do Caritó, assim, é um filme sobre autodescobrimento, paixão e arte; um retrato claro de pequenas cidades nordestinas do país, abrangendo a religião, cultura e política acerca de suas contradições para com a sociedade. Enquanto uma simples obra cinematográfica, o filme dirigido por João Paulo Jabur demonstra não só seus ideais de forma exemplar, mas deixa claro que existem diversas Marias do Caritó espalhadas por aí, apenas esperando a chance de se libertar das amarras que lhes prendem e encontrar, a partir do amor próprio e do autoconhecimento, seu lugar de direito no mundo real.

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