Do ponto de vista científico, memórias são reconstituições do cérebro para situações vivenciadas. Diferente do que uma visão mais leiga determina, memórias não funcionam como um disco rígido, já que existe um limite de processamento de informação e não de espaço. Há um dependência da situação para depender do funcionamento da memória, e da qualidade da mesma.

O tempo, por outro lado, possui diferentes concepções, dependendo do período ou do pensador. Na concepção platônica, tempo tem uma contraposição entre o que nunca se transforma e “é”. Enquanto, para Aristóteles, não existe tempo se não há movimento. Na questão científica, Galileu estabelece o tempo como uma quantidade mensurável no estudo dos movimentos. E para Newton, tempo absoluto flui por direito próprio, desvinculado de qualquer coisa, o que faz, do termo, uma grandeza física que permite medir a duração ou separação de coisas mutáveis.

No fim, apesar de definições distantes dentro de concepções ainda mais complexas, cada um dos dois termos possui seus significados próprios para cada pessoa. Os relacionamentos, como todo o período de união e as lembranças construídas – positivas ou negativas – funcionam da mesma maneira. E toda a grandiosidade do tema e o quanto suas expansões são apresentadas a cada vertente, é brilhantemente colocada em tela pelo texto e direção de Valerio Mieli. Constantemente poético com sua câmera e diálogos, Mieli faz de Entre Tempos uma reflexão pessoal, porém, abrangente, sobre a relação entre um casal.

Ainda que a temática se trate de um núcleo clássico quando o assunto é sétima arte, o cineasta italiano encontra sutilezas para fazer de Entre Tempos algo único.

Algo único em conseguir unir diferentes conceitos trabalhados em outras obras, como O Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004) e Dois Lados do Amor (2013), e transformá-los em uma história que funciona por si só. Há sim uma exploração temática dos dois filmes citados, tanto no conceito do relacionamento, mas principalmente do poder da lembrança sobre vivências com outra pessoa. A presença da obra de Ned Benson é clara na essência de Entre Tempos, mas o que Benson realizou em dois longas – dando, pra cada filme a oportunidade do espectador conhecer a versão de cada um dos protagonistas – Mieli realiza em um único, e conseguindo estabelecer um equilíbrio saudável entre o ponto de vista de cada um dos dois.

O brilhantismo narrativo é ainda melhor representado na fotografia de Daria D’Antonio e a montagem de Desideria Rayner. Os dois trabalhos são fundamentais ao seguir a estratégia proposta pelo diretor ao trazer o tom dramático na complexidade da lembrança envolvendo os dramas do relacionamento. Enquanto a edição estabelece uma linguagem dinâmica com cortes oferecendo constantes mudanças de planos e ambientes – e cenas – faz do filme algo próximo do funcionamento da própria lembrança, já que a mesma é formada for flashes e curtos momentos específicos para fazer jus a como os próprios espectadores reagem a suas reflexões sobre acontecimentos passados. Há também cenas mais extensas que fogem do tratamento mais veloz da narrativa, mas ainda faz parte do conceito envolta da memória. Muito pelo fato da percepção de tempo ser diferente para cada lembrança, algo parecido com o que Denis Villeneuve explorou em A Chegada (2016), por exemplo.

Visualmente, isso se torna ainda mais claro. Daria constrói uma cinematografia clara para estabelecer sua mensagem, tornando os momentos mais felizes em imagens mais claras e saturadas, enquanto as mais tristes se tornam mais escuras e frias. Ao observar do ponto de vista técnico, não há surpresa ou novidade na escolha. No entanto, seu trabalho tem correlação com a própria maneira como os próprios personagens e os espectadores estabelecem relembrar histórias e momentos. A própria montagem também brinca com a temática ao construir uma narrativa linear, mas se aproveitar de idas e vindas através de cortes, como também é explorado na série This Is Us (2016 -). O que faz sentido dentro de uma reflexão realizada por Santo Agostinho, que se refere ao fato do passado já não existir e que o futuro ainda não existe, o que faz do presente algo sem duração.

E esse, como todos os conceitos apresentados aqui no texto até então, são explorados no texto de Mieli ao conseguir encontrar equilíbrio e representá-los em sua narrativa.

Muito da qualidade se deve não só no trabalho técnico do texto e direção, mas conta igualmente com a presença significativa e satisfatória do elenco. Apesar do foco envolta dos personagens de Luca Marinelli e Linda Caridi, há também uma importante participação de Giovanni Anzaldo e Camilla Diana para entregar o tom certo à narrativa e provocar os momentos dramáticos da maneira mais coesa dentro da bagunça organizada de Mieli.

O que se deve muito a boa estrutura da história e da falta de amadorismo em não só criar bons diálogos, como torná-los fundamentais à jornada, é o fator da estrutura trabalhar muitos clichês, ao mesmo tempo que os quebra, tornando tudo menos plástico aos olhos do espectador, que se enxerga em tela, junto com os protagonistas. E o próprio roteiro consegue brincar também com isso, já que, como a própria narrativa trabalha os conceitos de lembranças e memórias, o longa faz quem assiste embarcar na mesma confusão mental dos personagens, tornando-os mais próximos da história, fazendo-os não só relembrar antigas vivências, como também fazê-los lembrar das principais referências trabalhadas no longa.

Neste quesito, Entre Tempos ainda consegue explorar outro conceito científico envolvendo lembranças e memórias de maneira poética. Da mesma maneira que seres humanos acabam por lembrar de histórias de diferentes maneiras – muito depende do contexto da necessidade da lembrança – os personagens também passam por isso, como muito bem explorado na montagem. Essas mudanças tratam daquilo que é chamado de “interferência de memória”, momento no qual o caminho seguido para chegar a uma memória passa por diferentes vias, trazendo à tona outras memórias que não necessariamente fazem parte do original. Com isso, há a criação de memórias que, aparentemente, são verdadeiras, para, justamente, fazer sentido a determinado contexto. Ainda que a brincadeira com a memória/tempo criada pelo cineasta italiano pareça algo gratuito ou com o simples objetivo de contar uma história, também funciona como um belo diálogo entre o real e a ficção. Além da demonstração do poder da memória diante os acontecimentos do presente. 

Isso faz do filme de Mieli uma emocionante jornada mais através do inconsciente do que do consciente. E, da mesma maneira que certas memórias conseguem ser “guardadas” com maior facilidade – dependendo da situação e como o corpo reage – Entre Tempos marca o início de uma possível longa jornada de relacionamento entre o espectador e sua história.

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