TÁR | CATE BLANCHETT EM UMA DAS MELHORES ATUAÇÕES DE SUA CARREIRA E UM FILME À ALTURA

Lydia Tár é uma compositora-regente, chamada por seus colegas de “maestro”. Ela mora na Alemanha, mas é mundialmente famosa. Lydia é considerada uma das – senão a maior – melhores regentes de todos os tempos. Numa entrevista de Lydia com o jornalista de um jornal renomado ficamos por dentro dos impressionantes feitos de sua carreira, pioneira como mulher, mas também no geral, se destaca em tudo que faz, chegando até a fazer parte do seleto grupo dos EGOTs – pessoas que conseguiram ganhar os principais prêmios da arte (Emmy, Grammy, Oscar e Tony). Sua lista de conquistas parece ser interminável e ao final da entrevista, uma coisa está mais do que evidente e comprovada: Lydia Tár é a melhor no que faz.

Interpretada com magnificência por Cate Blanchett, Lydia Tár não é uma pessoa real (apesar de haver uma certa polêmica por conta das similaridades entre a vida de Lydia e da condutora Marin Alsop, que chega a ser mencionada no filme), mas toda sua construção é tão crível que poderia ter me convencido, sem qualquer dificuldade, de que TÁR é, na verdade, um filme biográfico e que esse é o mundo de Lydia. O mundo de Lydia não só porque ela vive nele, mas porque ela vive como se o mundo a ela pertencesse. Seu senso de superioridade a princípio é sutil, sua carreira e seu sucesso falam por si só. Além de tudo que ela já fez, sua próxima empreitada é gravar a Sinfonia n. 5 de Mahler com a Orquestra Filarmônica de Berlim e completar esse ciclo em sua carreira.

Uma vez estabelecido que Lydia está no auge da sua vida profissional e que sua vida pessoal também parece ter sucesso – ela é casada com uma musicista, a primeira violonista na Filarmônica de Berlim, com quem tem uma filha criança –, conhecemos mais de perto a rotina de Lydia, perto o suficiente para perceber as rachaduras em suas estruturas. Tudo que parecia imaculado à primeira vista se prova construído em bases instáveis. Tudo, menos seu talento incontestável.

Numa cena em que Lydia dá aula para turma de uma faculdade de música, ela tem um embate com um aluno que diz que prefere não se aprofundar nos estudos sobre Bach por conta da modelo de vida misógino e patriarcal do compositor. É um embate de gerações, mas principalmente de pontos de vista. É possível separar a arte do artista? Talento é suficiente para que o artista seja celebrado independentemente do que se passa em sua vida pessoal? E se é possível, é justo que isso seja feito? É difícil (e nem é algo que devemos fazer) apontar com precisão o tema de TÁR, mas talvez o filme seja sobre isso, já que é exatamente esse o dilema que passa a assombrar a vida de Lydia.

Enquanto acompanhamos sua trajetória, descobrimos que Lydia está sendo seguida de longe, mas não longe o suficiente, por pelo menos duas pessoas e uma delas acaba revelando ser uma ex-aluna de Lydia, Krista (Sylvia Flote), uma jovem com uma carreira promissora na música, mas cuja trajetória profissional tinha sido interrompida por conta de seu relacionamento mais do que profissional com Lydia. Não temos acesso a esse relacionamento prévio, mas vemos com proximidade o relacionamento de Lydia com sua assistente, e também aspirante à música, Francesca (Noémie Merlant) e vemos perto o suficiente para entender como funciona a dinâmica de Lydia com mulheres mais novas e em situações de vulnerabilidade profissional em relação a ela, inclusive com uma nova jovem chamada Olga (Sophie Kauer) e que se torna a nova protegida da condutora. Não restam dúvidas, Lydia abusa de sua posição para arrastar essas jovens para relacionamentos tóxicos, é uma predadora.

Sua vida pessoal também se releva mais frágil do que parecia ser, sua esposa Sharon (Nina Hoss) não consegue se aproximar de Lydia como gostaria, a filha nem ao menos a chama de “mãe” e sim pelo nome, o ambiente de sua casa parece frio e calculista como sua personalidade e a tensão a acompanha a todo momento.

Embora traga os elementos de uma história sobre abuso, toxicidade no trabalho e cancelamento, sobretudo na era do #MeToo, seria um equívoco reduzir TÁR a um filme sobre isso. Não que um filme com esse teor seja menos importante – muito pelo contrário –, vários deles se mostraram de extrema relevância, mas a história de TÁR é particular demais para colocarmos sob a mesma lente. Lydia não é nenhum tipo de heroína feminista, nem sequer é uma personagem cativante ou admirável, pelo menos não além de seu talento para música, e aqui observamos sua ruína com um certo voyerismo agridoce. A cultura do cancelamento existe, Lydia inclusive passa por um episódio em que é vítima de fake news, mas nem por um segundo devemos, ou somos induzidos, a vê-la como uma vítima além disso.

O filme tem um aspecto de suspense muito interessante e único, que chega a flertar com o sobrenatural, principalmente depois de um momento chave da trama. Lydia está constantemente ouvindo barulhos estranhos, tem a sensação de estar sendo seguida, chega a pensar que alguém está entrando em sua casa, um de seus livros desaparece sem qualquer justificativa. O que está por trás desses acontecimentos? Não há uma resposta concreta, mas se tivesse que formar uma teoria, seria de que Lydia é assombrada por suas próprias atitudes do passado, uma mulher que chega na posição que Lydia chegou só pode ser derrubada por alguém de igual poder.

Se vimos Lydia prosperando no começo, do ponto mais alto de sua carreira, foi só para que pudéssemos ter uma perspectiva mais bem informada da sua queda. Seu caminho é de autodestruição sem que ela ao menos percebesse ou fizesse algo para alterar seu destino iminente. A música, sua maior obsessão, é justaposta com o barulho que invade sua vida. Quando tenta se isolar para se dedicar ao trabalho, é constantemente interrompida por batidas na porta, sons desconhecidos, vizinhos necessitados.

TÁR é um filme de muitas camadas e que pode – e deve – ser abordado por diversas perspectivas e possibilidades. Todd Field, roteirista e diretor, conseguiu criar com Cate Blanchett, que entrega uma das melhores atuações de sua carreira depois de ter aprendido a falar alemão, conduzir uma orquestra e reaprender a tocar piano, uma personagem e um universo tão reais e palpáveis quanto deturpados, em que nada é apenas uma coisa ou outra. TÁR e Lydia pertencem à essa zona cinzenta com uma familiaridade confortável para eles e mais ninguém.

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