POR QUE OS ROTEIRISTAS DE HOLLYWOOD ENTRARAM EM GREVE E COMO ISSO PODE AFETAR SUAS SÉRIES PREFERIDAS

No dia 02 de maio, um dia após o Dia do Trabalhador, os jornais e sites de notícias acordaram com a notícia de que os roteiristas dos Estados Unidos estão em greve, por tempo indeterminado, uma vez que suas tentativas de entrar em um acordo com os estúdios não foram alcançadas. Os protestos na frente dos maiores estúdios também começaram na terça-feira.

As negociações são feitas entre duas partes, a WGA (Writers Guild of America, uma força que junta os dois sindicatos de roteiristas dos Estados Unidos: da costa Leste e da Costa Oeste) e a AMPTP (Alliance of Motion Picture and Television Producers, uma aliança que representa os maiores estúdios dos Estados Unidos: Netflix, Amazon, Disney, Paramount, Sony, Warner, Universal, Apple e CBS). Os dois grupos estão em tratativas há quase dois meses sem chegar nem perto de encontrar uma solução que ambos considerem cabíveis. Esse é um problema que parece distante, mas que pode ter consequências globais e ainda afetar os seus filmes e séries preferidos. 

Vem com a gente para entender melhor por que a greve está acontecendo, quanto tempo pode durar, se isso já aconteceu antes e quais são as possíveis consequências.

AP Photo/Chris Pizzello

O MOTIVO DA GREVE

O último acordo feito pelo sindicato dos roteiristas foi em 2007 (vamos falar disso logo, logo) e desde então eles e os estúdios estavam vivendo relativamente em paz. A primeira coisa que vale ressaltar é a disparidade de “salários” entre produtores e roteiristas nos EUA. Lá, quem “manda” nos filmes e séries são os produtores, e além de receberem uma porcentagem muito maior pelo seu trabalho, têm todo o poder em suas mãos. Os roteiristas são como os outros funcionários de qualquer departamento de uma produção audiovisual, daí a necessidade de se sindicalizar. 

A principal queixa dos roteiristas vem das mudanças drásticas que o boom dos streamings causou e tem causado e o sucateamento da profissão, além da interferência da Inteligência Artificial no seu trabalho. 

Os streamings mudaram não só como a profissão tem funcionado, mas principalmente o modo como ela é remunerada. 

Falando estritamente de séries de TV, até poucos anos atrás elas eram transmitidas apenas nas TV e, salvo algumas exceções de minisséries, tinham a estrutura de temporadas com 20 a 22 episódios e as temporadas começavam no mês de setembro e iam até maio do ano seguinte, com alguns hiatos. Essa configuração trazia algumas garantias: a grande quantidade de episódios exigia uma maior quantidade de roteiristas, a maior duração das temporadas exigia que eles fossem empregados por mais tempo. O mais importante, no entanto, era o modo como essas séries eram televisionadas. Sem a existência do streaming, o público dependia das reprises – e os roteiristas também. Sempre que os direitos de uma série eram readquiridos para reprise, os roteiristas envolvidos na produção recebiam royalties.

Hoje em dia, a quantidade de produções aumentou drasticamente, acompanhando o aumento de streamings, e os roteiristas têm dado conta dessa alta de demanda. O problema é que as séries com 20 ou mais episódios já não são mais maioria, a regra agora são séries com 8 episódios, com mais espaço entre temporadas, e um número reduzido de roteiristas. O sindicato defende que essas medidas estão forçando o que antes era uma profissão estabelecida a se tornar um trabalho de freelance, distanciando cada vez mais a possibilidade dos roteiristas poderem se sustentar “apenas” com sua escrita. Esse é um cenário particularmente preocupante quando consideramos que existem dois grandes polos de roteiristas nos Estados Unidos, um concentrado em New York e outros em Los Angeles. New York é a cidade mais cara do mundo, Los Angeles não está muito atrás. 

Outro fator em jogo é um que está em alta – e causando estresse – em setores de muitas indústrias: a Inteligência Artificial. Quando pegamos o Chat GPT, por exemplo, que ainda nem está em sua versão final, só o protótipo já consegue fazer coisas como construir um roteiro a partir de uma ideia e escrevê-lo com o estilo de algum roteirista existente. Você poderia pedir para que ele escrevesse um roteiro como se fosse Quentin Tarantino e, agora, talvez seja fácil perceber a diferença entre o robô e o original, mas com a velocidade que essa tecnologia avança, é muito capaz que logo, logo seja praticamente impossível determinar o que é de verdade e o que é computador. Esse exemplo do roteiro é o mais óbvio para perceber o perigo que essa tecnologia pode apresentar aos roteiristas sem uma regulação adequada, mas muitos outros usos em menor escala ainda apresentam ameaça à profissão. 

O OUTRO LADO DA MOEDA

Os estúdios, por outro lado, defendem-se com a justificativa de que as exigências do WGA não poderiam ter vindo num momento pior. Nos últimos anos, principalmente, muitos estúdios têm visto suas ações caindo, o que tem causado diversos cortes de orçamento e demissão de boa parte de seus funcionários. Os grandes streamings juntos perderam mais de 10 bilhões de dólares com esse investimento só em 2022 e a própria Netflix, pioneira e grande líder em número de assinantes até hoje, só começou a dar lucro 10 anos depois de seu lançamento. 

Então é um fato, os estúdios investindo em streaming não estão tão bem das pernas, mas esse fato tem muitas variantes e pode ser questionado de vários ângulos diferentes, em relação à desvalorização do trabalho do roteirista (que foi separado do departamento de produção), à produção desenfreada de novos títulos (muitas vezes independente de qualidade), e a continuação dos investimentos altíssimos nessa modalidade sem reformular ou repensar o que se tornou o padrão atual.

O QUE ESTÁ SENDO PEDIDO E O QUE ESTÁ SENDO NEGADO

O WGA pede por melhores condições de trabalho e de salário. O ponto principal é o que eles veem como uma necessidade de se estabelecer um número mínimo de roteiristas por produção, além de um tempo mínimo de contrato, independentemente do tempo que o roteirista estará trabalhando de fato, para que os profissionais tenham uma maior estabilidade financeira. 

Os sindicatos também exigem mudanças em relação à forma como são pagos, para que sua compensação em relação aos royalties seja mais adequada à era do streaming e suas particularidades, estabelecendo-se um valor mínimo.

E a demanda final é que o uso de IA não seja usado de forma a prejudicar os roteiristas, incluindo a questão da compensação financeira, que textos criados por IA não sejam considerados para créditos e que IA não possa ser utilizada como material fonte. 

Em contrapartida, só o que a AMPTP ofereceu em relação ao uso de IA foi que ajustes em relação aos avanços dessa tecnologia sejam discutidos anualmente, sem qualquer promessa de regulação.

Quanto ao aumento pedido pelos roteiristas, representantes da AMPTP informaram que ofereceram valores maiores do que os atuais, mas estão de mãos atadas para chegar mais perto dos valores pedidos pelos sindicatos. A título de comparação, a soma dos ganhos dos roteiristas no período de um ano oferecida pela AMPTP ficaria em torno de 86 milhões de dólares, enquanto a quantia reivindicada pelos roteiristas seria de 429 milhões de dólares.

Diante da negativa de um acordo, quase 100% dos mais de 11.500 roteiristas membros do WGA votou pela greve. 

QUANTO TEMPO A GREVE PODE DURAR

Alguns fatores devem ser observados para uma previsão de quanto tempo pode durar a greve dos roteiristas. Um deles é o quanto as duas partes estão distantes quanto aos termos da negociação. Os valores ainda são discrepantes e a AMPTP não demonstrou interesse em melhorar, ou pelo menos começar, a regulamentação do uso de Inteligência Artificial, questões determinantes para os sindicatos de roteiristas.

O elo mais fraco nessa situação continua sendo os roteiristas. Os estúdios já estão perdendo dinheiro com os streamings de qualquer forma e uma paralisação de suas produções em andamento não seria relevante a ponto de quebrar um estúdio, pelo menos não mais do que já está. 

Uma grande vantagem dos estúdios também é a quantidade de conteúdo que eles já têm produzido e que está disponível para seus assinantes. Com os lançamentos quase semanais de diferentes títulos que têm acontecido nos últimos anos, demoraria muito tempo até que os assinantes sentissem a necessidade de exigir um conteúdo novo.

Por outro lado, a pressão popular e dos próprios membros da indústria pode fazer com que os estúdios cedam em menos tempo do que o esperado. São muitos os atores, atrizes e outros membros das produções que estão mostrando seu apoio aos roteiristas, principalmente aqueles que dependem deles diariamente, como os apresentadores de talk shows. 

O QUE ACONTECEU NA ÚLTIMA GREVE DOS ROTEIRISTAS EM 2007/2008 E O QUE PODE ACONTECER AGORA

O WGA já entrou em greve outras 5 vezes ao longo das décadas, em 1960, 1973, 1981, 1985 e 1988, a mais recente foi a greve que começou em novembro de 2007 e foi até o começo de 2008, tendo durado 100 dias. 

Pode não parecer muito tempo, ficar 15 anos sem greve, mas foi sim um longo período sem negociações. Para você ter uma ideia, um dos principais pontos a ser negociado em 2007 foi o pagamento aos roteiristas de royalties provenientes das vendas de DVDs. Quem diria que 15 anos depois esse problema já nem poderia existir? 

Essa greve de 100 dias num momento em que, como falamos lá em cima, as produções duravam o ano todo, acabou fazendo com que quase 25% da programação roteirizada fosse perdida. O prejuízo para a indústria foi de 2 bilhões de dólares, valor que, corrigido para os dias atuais, chegaria a 3 bilhões.

Os primeiros a sofrerem as consequências – antes e agora – são os talk shows e os programas diários. Você pode até pensar que um programa de entrevista não tem um roteiro, mas muito pelo contrário, todos eles possuem salas de roteiristas robustas, responsáveis por todo o programa, incluindo os característicos monólogos que costumam abrir os programas. Assim como ocorreu em 2007, apresentadores como Jimmy Kimmel, Stephen Colbert e Seth Meyers já avisaram que seus programas entrarão em hiato ou transmitirão reprises durante a greve.

Filmes como 007 – Quantum of Solace e séries como Breaking Bad sofreram com a paralisação. 007 foi atrasado, já a temporada inicial de Breaking Bad acabou com 2 episódios a menos. A produção de séries como Betty A Feia e The Office também tiveram que parar antes do programado. 

Na greve atual, algumas séries já se manifestaram a respeito da paralisação da produção. Jon Hurwitz, co-criador da série Cobra Kai, twittou uma foto de seus roteiristas com uma mensagem de apoio e dizendo que a 6ª temporada estará parada até o fim da greve. 

A mesma coisa aconteceu com a produção da série Yellowjackets. A co-criadora Ashley Lyle anunciou pelo Twitter que os roteiristas trabalharam apenas 1 dia no roteiro da 3ª temporada e agora já fecharam por conta da greve, mas voltarão assim que acabar. Sua mensagem também foi de apoio aos grevistas e ao WGA.

Quem saiu ganhando em 2007 foram os reality shows e programas de notícias, que por não dependerem de roteiro continuaram suas produções praticamente sem competição, o que pode facilmente se repetir agora.

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