
Homem com H
Diretor
Esmir Filho
Elenco
Jesuíta Barbosa, Jullio Reis, Bruno Montaleone
Roteirista
Esmir Filho
Estúdio
Paris Filmes
Duração
129 minutos
Data de lançamento
01 de maio de 2025
Na década de 70, quando iniciava sua carreira à frente dos Secos e Molhados, a personalidade de Ney Matogrosso era transgressora – desafiadora – e agora, cinco décadas depois e com todas as voltas que o mundo dá, o ultraconservadorismo se faz cada vez mais presente e histórias como a de Ney, ainda mais necessárias. Fortunúrio ainda maior é saber que esse filme (que também é homenagem sem nunca comprometer seu valor artístico) foi feito com Ney em vida, trabalhando e envolvido com a produção, a ponto de emprestar desde memórias a acessórios usados em shows. “Homem com H” se consagra como uma grande homenagem ao homem e ao artista Ney Matogrosso mas, sobretudo, como uma ótima cinebiografia.
Com um repertório fantástico e uma vida interessantíssima, o maior desafio do diretor e roteirista Esmir Filho pode ter sido definir o corte a ser abordado no filme – mas eu digo “pode ter sido” porque a impressão é de que Esmir não teve desafio algum: o filme é coeso, envolvente, visualmente bonito e ainda carrega atuações impecáveis. Como ponto de partida, vemos uma amostra do relacionamento que Ney (Jesuíta Barbosa) tinha com seu pai (Rômulo Braga) na infância, quando já causava estranhamento por não se comportar da forma que o pai julgava ser apropriada para um menino, a tensão intensificada pelo ambiente: o pai era do exército e ele, a mãe de Ney (Hermila Guedes) e Ney moravam numa vila militar. O relacionamento conflituoso entre pai e filho serve, de certa forma, como uma espinha dorsal para o filme, assim como foi uma força motriz na vida e carreira de Ney, que saiu de casa por se sentir sufocado pelo julgamento intermitente do pai.
A jornada de Ney é particularmente interesse de se acompanhar porque ele é movido não por dinheiro, não por ambição ou nem ao menos somente pela música. O que o filme nos passa é que Ney é movido pelo amor à arte e, especialmente, pelo instinto. Instinto esse que vem de um quê animalesco, produto da natureza, um “homem-bicho”, como o próprio Ney diz no filme. Isso faz com que a gente não possa antecipar seus passos – a maioria não faz sentido para o “homem comum”, mas se encaixa na personalidade livre e descabida do que viria a ser uma das maiores personalidades da música brasileira. Das decisões profissionais, musicais aos seus amores, as coisas que acontecem na vida de Ney parecem vir com uma naturalidade sem esforços, como quem está fadado a ser muito mais do que poderia imaginar. É quando Ney abre a boca para cantar, no entanto, que tudo fica mais claro. Num timbre inconfundível e inalcançável (foi uma decisão acertada deixar que Jesuíta Barbosa dublasse a voz original do cantor – a mixagem de som e a atuação são boas o suficiente para convencer com facilidade), Ney se destaca mais uma vez de tudo que é ordinário, simples. Assim como suas performances, Ney não é capaz de passar despercebido, ele demanda atenção e “Homem com H” faz um ótimo trabalho ao transformar esse magnetismo em cinema.
Como o próprio Ney Matogrosso falou durante a coletiva de imprensa do filme, ele sempre foi livre e num filme sobre a vida não caberia o pudor. Esmir Filho não só ouviu, como entendeu perfeitamente essa essência e optou pela honestidade para não esconder nada, decisão que rendeu cenas de sexo tão belas quanto a trilha sonora que as embalava. A sexualidade de Ney é retratada com a mesma seriedade que seus amores, ambos andando lado a lado, igualmente importantes para a construção da imagem do cantor e do homem, tudo isso se juntando na sua ideia de bicho, de selvagem, inclusive na construção visual do diretor, que faz uso de diversas referências da natureza ao longo da trama. É necessário destacar que o resultado extremamente positivo do filme (entre as melhores cinebiografias brasileiras) é também fruto de um equilíbrio entre direção e atuação. Jesuíta Barbosa está irreconhecível, não só porque perdeu alguns quilos e deixou o cabelo crescer em algum momento, mas porque durante todo o filme ele se parece mais com Ney do que com ele mesmo, nos trejeitos, no olhar, na atitude que mistura autoconfiança com autossabotagem numa personalidade infinitamente interessante.
Por Júlia Rezende