“Sem Amor”: A Rússia precisa de mães (e pais)

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Se você é amante da sétima arte e ainda não conhece o trabalho do diretor russo Andrey Zvyagintsev, está perdendo a chance de acompanhar um dos diretores europeus mais perspicazes e promissores desse início de século. Sua estreia causou impacto em 2003 com “O Retorno” – indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro -, contando a história de dois irmãos que precisam lidar com o retorno do pai autoritário após 12 anos de ausência, os levando a uma tensa jornada de maturidade e remorso pelo coração da Rússia.

Antes de ser indicado ao Oscar pelo épico drama “Leviatã” (2014), Zvyagintsev dirigiu mais dois filmes aclamados em importantes festivais, “O Desterro” (2007) e “Elena” (2011) – confesso que ainda preciso assistir a esses dois – e creio que foi aos poucos criando um estilo peculiar em suas obras. Apesar de seus filmes geralmente acompanharem dramas pessoais e familiares, por trás há sempre um reflexo do momento sócio-político do seu país (“Leviatã” provavelmente seja o exemplo mais claro). Como não sou especialista em política e nem estou acompanhando muito de perto a situação por lá, não vou me aprofundar tanto nisso.

Mas, para mim a questão é a seguinte: qualquer cineasta capaz de criar histórias interessantes e de temas universais (que nos possibilitem ‘empatizar’ com os personagens, se é que a conjugação está correta), e ainda consiga levantar questões sobre os problemas do seu próprio país por meio de dramas intensos e envolventes, esse profissional merece total respeito e atenção. E no seu último trabalho, “Sem Amor”, apesar da questão do envolvimento ser subjetiva de espectador para espectador, acredito que mais uma vez Zvyagintsev é uma voz que merece ser ouvida.

Uma criança desaparecida

“Sem Amor” conta a história de um casal, Boris (Aleksey Rozin) e Zhenya (Maryana Spivak, impressionante no papel), que estão nos estágios finais e amargurados do processo de divórcio. Ainda precisando viver juntos, enquanto tentam vender o apartamento, e com ambos já tendo encontrado novos parceiros, a convivência torna-se cada vez mais insuportável, cheia de insultos e provocações. Infelizmente, os dois não parecem se importar com Alyosha (Matvey Novikov), o filho de 12 anos que sofre consigo mesmo por se sentir rejeitado e ainda por cima um item indesejado na briga pela custódia que virá pela frente. Até que certo dia ele simplesmente desaparece.

Assim como indica o título, Zvyagintsev conduz seu filme de forma praticamente insensível e fria. O egoísmo dos adultos desperta não muito mais do que desprezo por aqueles personagens. Pela criança, obviamente, sentimos pena e compreensão, pois ela ainda não está pronta para lidar com problemas dos quais não tem culpa. Logo nos primeiros minutos, após imagens de árvores desoladas pela baixa temperatura local, a direção acerta ao nos mostrar o quanto Alyosha se sente sozinho. Na saída da escola, o vemos fazer um longo e solitário caminho até sua casa, lugar onde sabe que não é bem-vindo.

Ele observa da janela o horizonte e outras crianças brincando, talvez imaginando o que fez para não ser amado e tratado como uma pessoa que mereça ser feliz na sua idade. Enquanto isso, um casal visita o apartamento com interesse em compra-lo. A moça está grávida, e o rapaz é quem faz as perguntas. Entre um e outro comentário, fica bem claro que o que ele realmente está interessado é o tamanho do apartamento e não necessariamente se é uma boa escolha para seu filho(a) que está chegando.

 

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Um casamento destruído

Boris – preocupado em não ser demitido – e Zhenya – ressentida com o filho porque lembra o ex-marido (e possivelmente as más decisões que tomou) – levam incríveis dois dias para descobrir que Alyosha desapareceu. A impassibilidade e frieza com que a narrativa avança desperta cada vez mais desgosto por aquela situação (podendo espantar alguns espectadores menos pacientes), e outro elemento que Zvyagintsev sabe explorar muito bem é o uso “banal” da tecnologia e das relações interpessoais, que vão aos poucos se sobrepondo à própria convivência humana.

Através de atitudes e relatos não apenas dos protagonistas, mas de toda a sociedade (funcionárias de salão, patrões que forçam as pessoas a viverem de aparências mesmo que não se importem mais umas com as outras, mulheres em um restaurante ou a filha que não faz questão de visitar o pai), vemos como as pessoas hoje vivem em busca de distrações fugazes para disfarçar o medo pelo amanhã. E entre esse mundo de selfies, redes sociais e a banalização da infidelidade, por exemplo, a própria narrativa nos faz esquecer do garoto, colocando teoricamente o tema mais importante (seu desaparecimento) em segundo plano até praticamente metade do filme.

Possivelmente nas mãos de um diretor mais otimista, a tragédia poderia servir de combustível para a união do casal, ou ao menos uma reflexão dos péssimos pais que são. Porém, Zvyagintsev é muito mais duro com o espectador, colocando essa família disfuncional atrás de respostas sem ter a mínima ideia de como encontrar uma saída para os seus problemas. Por outro lado, será que o desaparecimento do indesejado garoto não resolve boa parte dos seus conflitos? Sem o apoio da polícia, resta a eles se unirem à boa vontade da própria comunidade, na esperança de um final feliz – que talvez nem seja o que eles queiram.

Um país em crise

Como mencionei anteriormente, o diretor costuma usar temas universais como paralelo para a situação do seu próprio país. Embora “Sem Amor” aparente ser bem menos político que “Leviatã”, acredito que pode ser considerado uma crítica à condição humanitária na Rússia (e na sociedade, de modo geral) – a título de curiosidade, “Leviatã”, que fora financiado com ajuda do governo, mas fazia uma crítica ao próprio, foi aclamado mundialmente e perseguido internamente, o que fez Zvyagintsev buscar recursos em outros países desta vez.

Como eu disse, não quero especular muito neste campo político, mas a impressão que fica é a de que Zvyagintsev esteja mostrando que o povo russo está se sentindo abandonado. Assim como uma criança não pode crescer como um ser humano decente em um ambiente tóxico como o de Alyosha, Boris e Zhenya, como um povo pode viver com dignidade e se sentir amparado se falta amor por todos os lugares (lembrando que a Rússia está em Guerra com a Ucrânia por conta de uma disputa territorial)?

E enquanto guerras e protestos fervorosos acontecem, a maioria parece estar preocupada com seu narcisismo e buscando sua própria felicidade sem se importar com aqueles que mais precisam. Num dos momentos mais tensos do filme, duas garotas bêbadas surgem dando risadas e fazendo brincadeiras. Para grande parte da população, a violência é tão comum que parece que nem incomoda mais. No entanto, conforme a procura pelo garoto avança e novos casos vão sendo descobertos, os olhos começam a abrir.

Considerações finais

Assim como muitos filmes considerados “de arte”, “Sem Amor” requer um investimento forte por parte do espectador. Não é uma história fácil e não é contada de maneira fácil. Eu considero um bom filme e uma indicação merecida ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro este ano pela maneira coerente como a direção decide abordar a trama: um drama frio, se passando em um lugar frio sobre pessoas frias.

Entretanto, o filme não é asséptico ou sem emoção. Há momentos de angústia genuínas (como ato final), que demonstram que, além da história, tecnicamente as escolhas foram extremamente competentes – o elenco está impecável, a fotografia compõe alguns quadros belíssimos e o uso de iluminação, escuridão e cores reforçam a sofisticação da direção de Zvyiagintsev – algo já mais do que comprovado no seu filme anterior.

E é isso que eu amo no cinema, essa capacidade de abordar vários assuntos por meio de histórias nem sempre felizes, mas que conseguem nos alertar para todos os problemas acontecendo ao redor do mundo. “Sem Amor” pode até parecer uma história comum de desaparecimento infantil, mas logo se manifesta como um reflexo no espelho para reconhecermos nosso egoísmo e negligência para com aqueles que precisam da gente.

E você, já assistiu ou está ansioso para ver? Concorda ou discorda da análise? Deixe seu comentário ou crítica (educadamente) e até a próxima!

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