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‘Um filme de Paul Verhoeven’.

Resumo: Michele (Isabelle Huppert) é uma empresária de sucesso, líder de uma empresa de jogos para vídeo-game que é abusada sexualmente em casa. Cercada de homens misteriosos, ela acaba se envolvendo em um jogo de gato e rato até descobrir quem é o culpado. A direção é do holandês Paul Verhoeven, muito acostumado a filmes de temáticas sensuais, violentas e polêmicas, como ‘Robocop’, ‘Instinto Selvagem’ e ‘A Espiã’. O roteiro foi adaptado pelo obscuro roteirista David Birke (de ‘Os 13 Pecados’), baseado no livro ‘Oh…’, de Philippe Dijan.

Quais temas o filme aborda? É baseado no livro que rendeu a Dijan o prêmio de literatura francesa em 2012. ‘Oh…’ é uma obra polêmica, que (colocando de maneira simples) é uma história sobre estupro e passados traumáticos, retratando praticamente todos os homens como covardes e sua protagonista como uma mulher forte e decidida. Quem melhor para adaptar uma obra tão ‘politicamente incorreta’ aos cinemas do que um dos diretores em atividade mais ousados e subversivos como Verhoeven? Segundo palavras do próprio diretor, já há um bom tempo ele vinha procurando fazer algo diferente de tudo o que já havia feito, pois ‘se aventurando no desconhecido é que um artista se descobre’.

Portanto, o termo que melhor define ‘Elle’ é dizer que ‘é um filme de Paul Verhoeven’. Mas, de maneira universal, independentemente da protagonista ser uma mulher, enxergo o filme também como a história de uma pessoa completamente autossuficiente que sempre precisou lidar com as dificuldades da vida de maneira muito corajosa, pois ao invés de aceitar sua condição de vítima perante os problemas, ela sempre teve as rédeas bem firmes no controle da sua vida. E como todos têm seu calcanhar de Aquiles, essa proteção ‘inabalável’ e excesso de controle podem impedi-la também de criar algumas conexões emocionais, como o perdão, por exemplo.

Personagens, roteiro e atuações: Após a recusa de várias atrizes, dentre elas Nicole Kidman e Sharon Stone, Verhoeven decidiu mudar a história de Boston para Paris, pois a maior liberdade do cinema europeu permitia o diretor abordar seu conteúdo polêmico da forma como havia idealizado desde o início. A francesa Isabelle Huppert – grande fã do diretor e que já havia lido o livro – ficou então com o papel. E não há dúvidas de que a escolha foi extremamente acertada. Isabelle expressa exatamente aquilo que a personagem deveria ser, uma pessoa que age e toma decisões porque pode e também porque quer, sem medo de desafios ou o que os outros possam pensar. Prova disso é se destacar profissionalmente em um mercado geralmente dominado pelo sexo oposto. Isabelle é daquelas atrizes como o vinho, que só melhoram com o tempo.

O roteiro funciona como um suspense bem eficiente, deixando o espectador sem saber o que vai acontecer em vários momentos. Entretanto, possui alguns problemas e inconsistências que vão desde ‘necessidade’ até ‘probabilidade’ em algumas situações. Considerando que um dos objetivos do roteirista seja escolher dentre todas as vertentes possíveis, aquelas que realmente impulsionem a história adiante, alguns momentos parecem deliberadamente exagerados para ‘empoderar’ a protagonista de uma forma que não era necessária, pois tanto a personagem quanto a atriz já eram fortes o suficiente. Arrancar parachoques ‘gratuitamente’, mandar um personagem abaixar as calças, insinuações de bissexualidade… Ok, pode ser uma opção da direção tornar a personagem ‘8 ou 80’, mas esse ‘extremismo’ faz o filme correr o risco de se tornar irritante e autoindulgente demais para alguns espectadores. Será que essas cenas não poderiam ter sido pensadas de forma diferente, buscando ‘humanizar’ mais a personagem?

Quanto à probabilidade, o terceiro ato – ao passo que reverte algumas expectativas surpreendendo o espectador – possui algumas decisões bastante questionáveis também. A mudança repentina do filho (interpretado por Jonas Bloquet, que era uma verdadeira ‘porta’ durante noventa por cento do filme), o desfecho da relação com a amiga Anna (Anne Consigny), além de outros detalhes, podem fazer o espectador questionar a credibilidade de tudo o que foi plausivelmente construído nos dois primeiros atos. Completam o elenco uma série de atores e atrizes bastante conhecidos e respeitados na França

Controvérsia e conclusão: O filme tem sido ‘atacado’ por algumas pessoas que consideram que a narrativa não abordou o estupro da forma criminosa como realmente deveria. Ao ser questionado sobre ‘Elle’ ser mais um thriller erótico, assim como foi ‘Instinto Selvagem’ e que também foi um subtema bem presente em outro filme do diretor, ‘O Homem Sem Sombra’, Verhoeven negou veementemente essa visão do seu trabalho. Para ele, é um filme sobre estupro, que pode até ser erótico para a pessoa que está fazendo isso, mas ele não acredita que a violação sexual seja algo que ele chamaria de ‘erótico’ (ainda bem). Provavelmente, sua intenção foi justamente essa, estimular a discussão sobre o assunto.

Há também uma certa relação edipiana, só que mais sutil e inversa. Alguns momentos (como a cena do sorvete no carro ou o beijo entre o filho e sua namorada) dão a entender que Michele – além de ser controladora – é muito ciumenta e superprotetora com relação a Vincent (seu filho), chegando a rivalizar com sua nora (que está grávida) pela atenção dele. Mas, como Michele é uma personagem tão ‘carregada’ e complexa, isso pode não passar de uma teoria. De qualquer forma, ‘Elle’ é o segundo filme de Verhoeven que entra para a competição oficial em Cannes (o outro havia sido ‘Instinto Selvagem’) e é sem sombra de dúvidas um dos filmes que mais vai render discussão por muito tempo. Surpreendentemente, foi uma escolha bastante arrojada do comitê francês que o indicou como representante nacional ao próximo Oscar. Com grande atuação de Huppert e uma direção bastante ousada de Verhoeven, ‘Elle’ certamente é um filme que vale a pena acompanhar.

UM MOMENTO APIMENTADO: A cena da caldeira vermelha no subsolo, enquanto o filho dorme no sofá.




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